segunda-feira, 25 de abril de 2011

Quando a melodia calou a letra.


Dia cansativo de trabalho, reuniões, blocos de palavras exaustivamente arquitetadas para argumentar assertivamente, trazendo para si a razão. Jogo devidamente conduzido. Em seguida vêm os louros da vitória, fruto da fé. Mais um leão morto, assim como é preciso todos os dias.

Depois de tanta realidade cotidiana de cidadã comum, recebo a visita de uma dupla de amigos de Minas Gerais, habitantes do Balneário Fluminense. Ela, uma querida. Ele, muito amado. Ela, de Cataguazes. Ele, de Araxá. Dizem que mineiro come quieto. Tá bão, então. Estavam aqui só pra me ver. Sinto o quanto ficam confortáveis nesse ninho de cor salmão. Também os tenho em meus braços, do mesmo jeito. Ficamos juntos por um tempo, a papear na sala de estar. Sem prever, passa na tevê um daqueles shows de realidade babacas, que não sei por que a gente acaba prestando atenção: uma mulher belíssima é eliminada da competição “Top qualquer coisa”. Modelo/Manequim sempre tem que ter essa coisa de “TOP”, cume, ponto mais alto. Nunca entendi o motivo. Talvez alguma afirmação necessária, própria de uma profissão jocosa que exige andar pra lá e pra cá, posar para fotos fazendo caras e bocas com o intuito de vender e vender. Tornar-se cabide, por vezes de criações esdrúxulas. E as mais lindas e poderosas estão lá. Elas são as TOP... TOPO... Por causa do som, lembro-me de Topo Gigio, um ratinho com personalidade infantil. Nada a ver. Associação puramente sonora. Será? Deixa pra lá.

A tal Belíssima Eliminada tem a justificativa que assim o foi por ser gélida. Concordo plenamente com a comissão julgadora do programa. Não bastando ser considerada um ser glacial, lançou uma expressão psicopática traduzida por um olhar estranhamente fixo e ao mesmo tempo perdido durante o momento da sentença. Mas o que era perturbador para os meus amigos, e inaceitável, é que ela era extremamente bela. Começaram as discordâncias - Eles diziam: surreal, é ninfa, musa, diva. Eu, por minha vez: beleza perfeita demais não marca, parece boneca, robô construído matematicamente. Continuo dizendo que é preciso mais do que traços harmônicos, algo que venha da alma e arrebate. E que as imperfeições, pequenas que sejam, tornam-se charme, caracterizam, eternizam, apaixonam. Digo que sei o que estou falando, fui instrumentada para isso. Um dos meus amigos, o mais novo, resolve discutir e desdizer. Perco a paciência. Resultado: tem show da Zelia Duncan aqui perto. Eles partem. Não achei ruim não. Fiquei aqui com e-mails pra checar, trabalho para concluir.

Já facebookiando no intervalo, aparece Daniel, amigo que só vi uma vez há quatro anos. Ele deve parecer pra quem me lê, uma espécie de Wilson, do filme Naufrago com Tom Hanks. Digo Wilson no sentido de ser um amigo imaginário, inventado. Mas não é não. (Esta é a segunda vez em menos de um mês que ele aparece nos meus escritos.) Real total. Poeta também. Perturbado. Tomado pela sensibilidade e pela Palavra. Não esqueço suas cores latinas, voz gutural, músculos desenhados, salientes. E, apesar de ser difícil de acreditar, está sempre a tecer palavras exuberando inteligência. Praticamente um ET. Seus exageros são o que o tornam humano. Se não, seria uma espécie de deus da perfeição.

Começamos mais uma de nossas longas conversas telefônicas. Não entendo bem o que ele diz devido ao seu alto grau etílico. Mesmo assim, percebo o pedido: quer que eu escute uma determinada música. Nossas conversas são desse jeito. Ele me mostra o que descobre ou tira do fundo do baú. Sempre algo que o mova, entusiasme. Deixa o telefone por segundos e aperta o play do som caseiro na maior altura: Eis que surge Enjoy the Silence do Depeche Mode. http://www.youtube.com/watch?v=Dp2mH9nrz60

Ouvi. Curiosamente, depois de ler na caixa de diálogo do mocinho de Araxá que eu preciso escutar mais as pessoas. O show de Zelia Duncan já havia terminado, e ele já havia voltado para casa, para os braços do seu computador.

De quem comumente discordo, por vezes escuto a conclusão que EU não ouço. Daí replico: simplesmente tenho outra opinião. Para eles, não concordar é não ouvir. Ah tá.

Enjoy the Silence me faz reviver momentos de alegria vívida, próprios da minha adolescência anos 80. Procuro a canção no You Tube. Quero ouvir por mim mesma. E centenas de vezes. Sempre é assim quando gosto demais de alguma música.

No vídeo-clip há um personagem, um rei com manto vermelho, um coroado que sobe montanhas com uma espécie de cadeira de praia até chegar ao topo, ao TOP. Então ele senta e observa em silêncio a beleza suprema da paisagem. No último quadro, chega ao topo de uma montanha de gelo.

Na sequencia, procuro o significado de “Depeche Mode”, que considero sonoramente estranhíssimo. AWikipedia ajuda: “O nome Depeche Mode foi baseado em uma revista francesa de moda (homônima) que Dave Gahan costumava ler, já que antes de seguir a carreira de cantor, ele estudava para ser estilista. A tradução do termo gera polêmicas, mas ao pé da letra significa "Despacho de Moda".

Subitamente me lembro da Bela Despachada pra casa pela comissão de modelos seniors do tal Reality Show. Literalmente, um despacho da moda. Uma não coroada, uma que não chegou ao topo. Talvez ela nunca se esqueça dessa suposta verdade: “Você É fria, sem sentimentos aparentes.” Espero que não sofra por isso. Por outro lado, se sofrer, tanto melhor. Sinal de que não é um iceberg. Bom, milhões gastos em terapia podem resolver.

Voltando para Daniel, ficamos os dois escutando a mesma canção em pontos diferentes, cada um na sua casa, unidos por uma chamada telefônica, e separados por uma enorme distância física. Procuro a tradução da letra no site Lyrics:


“Aprecie o Silêncio
Palavras agressivas
Quebram o silêncio
Vem destruindo
O meu mundo particular
É doloroso para mim
Fica me machucando
Você não consegue entender
Oh, querida minha
Tudo o que eu sempre quis
Tudo o que eu sempre precisei
Está aqui em meus braços
Palavras são desnecessárias
Elas podem até prejudicar
Promessas são feitas
Para serem quebradas
Emoções são intensas
Palavras são insignificantes
Os prazeres ficam
E a dor também..."

Daí os dois poetas choraram juntos delicadamente, ao realizarem o quanto a Palavra, além de traduzir beleza, pode ser antagonicamente destruidora. Detestamos a Palavra naquele momento. Amor de verdade oscila entre ódio e paixão. Ouvimos a música infinitamente. A letra dizia e desdizia a sugestão de apreciar o silêncio, simplesmente porque dizia alguma coisa, ofuscando o silêncio pretendido. E a gente só cantarolava e dançava. Cada um na sua. Sem pronunciar uma palavra nem dita, nem cantada, com os fones dos telefones devidamente posicionados, registrando nossas respirações que bailavam plenas, poderosamente dirigidas pela melodia que calou a letra. Mas a letra sempre acorda em mim, é a minha natureza. E aqui está ela a me fazer companhia eterna.

PS. Um agradecimento especial aos meus anjos da guarda, cada vez melhores na escolha das trilhas sonoras das minhas histórias diárias, crônicas.

PS 2. Daniel existe mesmo. Só não se chama Daniel.

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