quarta-feira, 21 de abril de 2010

Linhas Tortas



Tempo livre depois de meses de muito esforço para realizar meu livro de poemas, um roteiro onde eu os transformo em peça teatral, fotos para cada poema (onde eu não os ilustro) transformando-as em gravuras, e ainda, um cd onde digo os meus poemas com convidados, e elaborada e extensa trilha. Ufa!

Deveria pegar uma prainha merecida, ainda mais depois de tanto chuvaréu. Mas daí a branquela vem direto aqui paro o seu cantinho virtual. Penso nos que me acompanham no blog, silenciosos nos comentários, mas que ao me encontrarem ao vivo, reclamam por minhas postagens serem tão esparsas. Penso que nesse tempo sem me recolher sobre a minha bandoka e o lap top Dell branco, vivi situações interessantes, e poderia tê-las transformado em alguma história que pudesse trazer um sorriso, uma questão, uma dose de encantamento, ou simplesmente uma curiosidade saciada.

No dia do “grande temporal” que fez centenas de vítimas no Rio e em Niterói, sairia de carro de Ipanema rumo a Jacarepaguá. Meu destino era um lugar totalmente desconhecido, e eu não tenho um moderno GPS. (Sequer um antigo, na verdade).

Chegando ao Palio preto, percebi que minha bateria arriara depois de anos, totalmente invicta. Bradei reclamando da sorte. Rapidamente subi, liguei para o Seguro, e deixei o “pepino” com meu afilhado adolescente apaixonado por carros. À esta altura, já sabia que ônibus deveria pegar. Não guardei bem a informação. Tenho memória auditiva mais fraca que a visual: ou era o ônibus 2113, ou o 1321. Depois que vi o letreiro, os neorônios loiros não me trairiam mais. 2113 mesmo.

Visualmente, eram o dois e o três entre barras. Bom, o fato é que estava preocupada com meu tempo de ilha de edição correndo.

Já dentro do ônibus, fiquei até aliviada. Apesar de o caminho ser muito longo, e cheio de curvas e bifurcações, o motorista o fazia com a segurança de um profissional das rotas. Mapa do Google é bom quando se tem um carona. Se o trajeto é longo e cheio de detalhes... Que perigo trafegar sozinha, voltada à toda hora para o papel! Devo ter chegado lá de ônibus, muito antes do que se tivesse ido de carro.

Saltando na parada em frente ao mercadão do bairro, aproximou-se de mim um senhor deveras preocupado. Ele havia acompanhado minha movimentação dentro do ônibus, quando tentava descobrir junto ao motorista, qual seria a parada de descida. Observou que eu estava meio perdida, e se prontificou a me ajudar. Disse que eu era moça fina, e que ali estávamos próximos à temida Cidade de Deus. Percebi que era um senhor aposentado respeitoso, querendo participar, ser útil, ter um instante de companhia. Deixei que me guiasse. Logo queria colocar-me num taxi. Não era eu, uma moça fina? Mas se eu saltei no ponto mais próximo da Produtora Multimídia, ainda teria que tomar um taxi até lá? Conversando um pouco mais com o gerente do ponto de “amarelões”, realizei que poderia seguir a pé mesmo. O Senhorzinho fez questão de acompanhar a Moça Fina.

Durante o percurso, ele revelou que era aposentado do Estado. Paleontólogo. Contou que sua maior descoberta havia sido um ninho de tartarugas com cascos gigantescos quase intactos, com mais de “centenas de milhares de anos”. Ele os descreveu em cada detalhe. Explicou sobre as suas fendas e seus significados. Explanou sobre os hábitos da tal tartaruga jurássica. Fiquei espantada com a longevidade desse animal tão antigo e vagaroso e, ao mesmo tempo, já morto há tantos milênios a ponto de se tornar um fóssil valioso.

Fiquei bastante curiosa sobre o ofício do Senhorzinho. Que interessante ser um explorador dos tesouros perdidos da natureza... Encantava-me suas explicações sobre seus instrumentos de trabalho e como se dava o manuseio. Subitamente me lembrava da mesma excitação que sinto ao me esparramar na cadeira do dentista. Não tenho medo algum, e sim, uma enorme curiosidade para entender o uso e a forma necessária de cada instrumento.

Essa curiosidade me é atiçada quando entro numa cozinha profissional, num ateliê repleto de palhetas e pincéis, num laboratório de ciência, e quando vejo inúmeras goivas que servem a um entalhador. Acho que essa especial atenção existe porque nunca tive instrumentos materiais, táteis. Meu instrumento é o ator, gente. Dirijo a platéia através dele. Meu ofício é subjetivo. Talhamos os personagens com a justa tradução do que imaginamos para ele. Precisamos de madeira nobre que se acomode aos nossos imaginados entalhes, que revele brilhos e relevos para que possamos salientá-los. Este é o ator.

Já dizia Michelangelo: “A escultura já está dentro da pedra de mármore. Só precisamos tirar os excessos.”

Ao chegar ao meu destino, À PC vídeo, deixei o endereço do meu blog com o Senhorzinho. Já sabia que ele se tornaria um personagem meu. Ao final de nossa conversa/caminhada, o assunto já era espiritualidade, entes queridos que haviam partido. Nós nos despedíamos, e já agradecia aos Anjos da Guarda pelo presente em forma de gente. Pra mim, era um sinal de que estava protegida, que não me preocupasse: nada de terrível me aconteceria durante o processo deste trabalho onde derramo todo meu amor com minhas próprias palavras, muito mais do que em qualquer outro projeto, antes realizado.

Recordo-me perfeitamente dos seus trajes: estava todo de branco, com bermudas, mas empunhando um enorme guarda-chuva. Fazia sol, era manhã. Não dava para prever o chuvaréu que se daria à noite. Talvez, ele mesmo fosse um anjo ali encarnado. Dobrou a esquina, e sumiu. Bateu asas, sabe-se lá.

Chegando à Produtora, feitas as devidas apresentações, segui para o início da minha edição. O primeiro verso a ser trabalhado para o cd, dizia assim: “O pianista vem piano de lontano”. Tirei essa idéia do ditado italiano que diz: “Piano, piano si vá lontano”, que quer dizer: “Devagar, devagar, se vai longe”. Claro que fiz associações imediatas à tartaruga que chegou de tão longe até a mim, e ao ônibus que eu considerava uma tartaruga, e que chegou ao fim do trajeto antes do que chegaria a lebre do meu Palio preto Fire. Sorria sozinha.

O pessoal da produtora deve ter pensado: “Simpática, sorridente essa moça...”
Fina, eu não sei se eles pensaram.

O dia transcorreu tranqüilo. Fernando, o Diretor de Conteúdo me tratou muitíssimo bem. Estava disposto a ajudar mais do que eu poderia imaginar. Sentia uma boa, e forte vibração vinda da parte dele por participar de um trabalho tão somente artístico. Ele, sempre acostumado aos importantes vídeos institucionais mais corriqueiros, parecia estar se divertindo muito com a possibilidade criativa da poesia, e tratando o projeto com toda a seriedade e compromisso, ao mesmo tempo. Bom, quando o trabalho é assim. Se pudéssemos engataríamos numa boa prosa. Mas havia a concentração obrigatória para desenvolver nossas atribuições.

Rafael, o operador de edição que compunha o trio, é um rapaz esperto, caladão, antenadíssimo, misterioso, cheio de ritmo. Já sabia que era músico. Baixista, só podia ser. E é. Descobri depois, e me senti a própria "Fellini de saias" ao criar seu filme “Um Ensaio de Orquestra”. Neste filme, o diretor revela bem o temperamento em comum que está por trás de cada instrumentista.

A dedicação deles foi tanta, e nada ansiosa, que acabei por terminar o cd antes do que eu imaginava. As teclas certeiras da ilha eram seus instrumentos. Ah! Essas, eu também toco! Que feliz: Descobri-me não mais como uma “sem-instrumento”. Será que é por isso que eu gosto tanto de música instrumental? Carmen, minha terapeuta precisa ler essa postagem. Altas descobertas, dos mais profundos fósseis do meu inconsciente.

Fui muito feliz ali. Não era uma cliente comum. Permutávamos. Mas o tratamento transcorreu como se eu estivesse pagando em ouro. Não vejo a hora de poder retornar à felicidade que senti ali. Não vejo a hora de colocar a minha voz onde eles quiserem: comercial, institucional, documentário, dramaturgia. Quero muito é estar com eles, que, como mágicos, fizeram o Piano de Pablo Lapidusas se encontrar com a minha poesia, no etéreo espaço do som. E finalmente, após longos seis anos.

O músico tocava e eu disparava a escrever. Mas só eu ouvia o dueto do piano com os rabiscos poéticos. Agora está aí, para o mundo!

Voltando um pouco no tempo, no final do primeiro dia de edição, eis que surge o toró do século. Entendi que tive sorte, e não azar por minha bateria ter arriado, justo naquele dia. Deus escreve certo. Às vezes dá uma entortada na linha só pra sair do tédio. Não que Ele, como um deus menino, se distraia ou se divirta com as catástrofes naturais... Esse dito faz parte do poema da Claufe Rodrigues, poeta que me inspira muito. Aqui, nessa minha postagem, soaria de mal gosto.

Esta semana o lançamento do meu livro foi novamente adiado. Para o período de Copa do Mundo. Tudo bem, terei uma tiragem maior, mas já sinto o filho maduro quase sufocado pela necessidade de cortar o cordão umbilical. Vou esperar pra ver.

Há um outro poema no livro, no cd, e na peça, onde falo sobre o vício masculino do futebol. Ao invés de reclamar, digo que tiro os meus colares, pulseiras e também brinco: que vamos botar fogo no corpo a corpo: “Na hora do gol é que a gente se explode, um camisa dez, o outro, claro, camisa nove. Partiremos então para um abraço sem demora, erguendo juntos a taça, ela, a taça, a taça da vitória! ” Quem sabe se ao invés de me distanciar da imprensa que vai estar pensando redondo, ao contrário, posso criar um gancho?

Talvez "em outras Esferas” estejam planejando algo que me surpreenda para que eu possa repetir novamente o slogan que escolhi para os meus dias aqui nesse planeta: “ se não está bom ainda, é porque não chegou ao final da história”
Volto a me lembrar de outro poema do livro, onde há um verso assim: “O Rio chove tartarugando os carros que passam...” Sinto-me como se escrevesse uma Epopéia. E é só um livro de poemas...Mas cá entre nós: especialíssimo.

No meu último dia na PC vídeo, voltei pra casa na garupa da moto do Fernando. Ele, gentilmente, já havia me oferecido carona dias antes, mas eu tinha receio desse trânsito tão cruel com os motoqueiros. Com a obra sonora completa, lembrando que estava protegida, aventurei-me no horário de pico. eEnfrentamos São Conrado, Rocinha, Lagoa, Gávea. Adrenalina pura. Ultrapassávamos uma população de carros. Levamos uns trinta minutos. Muito menos tempo do que levaria de carro, e ainda menos tempo guiada por um motorista profissional de ônibus.

Piano, piano si vá lontano... e a tartaruga venceu a lebre...Mas depois a lebre venceu a tartaruga....

Mais divertido, assim, não? Já pensou se só um time vencesse a Copa do Mundo? A Vitória só tem graça, se ha possibilidade da derrota.

Hoje, Brasília, cidade/lebre que cresceu alucinadamente completa hoje apenas cinquenta aninhos. O prédio do Congresso que mais parece um troféu, uma taça da vitória, parece ser feito com a imagem de dois cascos de tartaruga. Um voltado pra cima, outro voltado pra baixo.

Hoje, em homenagem à Brasília, onde eu passei longos 15 anos, declaro empatada a corrida entre a lebre e a tartaruga! Hoje o zoológico todo ergue a taça de vitória.

7 comentários:

Bruno Wenke disse...

Paula e sua magia de sempre !

Unknown disse...

E ainda neste dia, em que postei essa crônica, Brasília - cidade lebre simbolizada com dois cascos de tartaruga, um virado pra cima, outro pra baixo no congresso, fazia ínfimos 50 anos. Dessa vez deu empate entre lebre e tartaruga.

Anônimo disse...

CONTINUE ASSIM ENCANTANDO SEMPRE!

Anônimo disse...

Suas postagens sao inspiradoras!

Anônimo disse...

Inspirador !

Anônimo disse...

Digno de colunista do globo ! rs

Anônimo disse...

Eita moça fina! Muito melhor !